Mistérios e viagens de um manuscrito......

A Factura de los acopios q.º Dn. Jn. B.ta Ardisson ha hecho en Paris p.ª la Guarda Ropa de S. M. M. la Reyna N.S., y Sr.ª Infanta D. M.ª Franc.ª de Asis. Paris 1816. 4º &.

A recente notícia da aquisição, para o Palácio Nacional de Queluz, pela Parques de Sintra Monte da Lua [aqui], de um manuscrito relativo a compras efectuadas pela Rainha D. Carlota Joaquina (1775-1830), no ano de 1816, suscitou alguma curiosidade no meio museográfico, pela possibilidade de acesso a um documento pormenorizado sobre os consumos sumptuários por parte de um elemento preponderante da corte portuguesa, no início de oitocentos. Uma análise detalhada da documentação permitirá avaliar eventuais acertos, ou desacertos, desta com os principais centros europeus difusores da moda, com grande destaque para Paris, onde boa parte das compras teriam sido efectuadas, cidade que, desde o início do séc. XVIII, ditava os modelos a seguir, nas artes da mesa, na etiqueta, no vestuário, entre outros domínios da representação social.

Para a escrita da História são indispensáveis documentos sendo as Bibliotecas e os Arquivos os guardiães primeiros desses testemunhos, assim como os Museus o são para os objectos artísticos. Quer sejam fontes manuscritas, impressas, ou iconográficas, servem de suporte a narrativas, fundamentam teses, permitem contextualizar factos, auxiliam o progresso do conhecimento, pelo que o enriquecimento das colecções nacionais, mediante a aquisição no mercado destes testemunhos dispersos, é algo de saudar.

Esta notícia veio, em simultâneo, chamar a atenção para o facto de um manuscrito, com título idêntico, constar do Catálogo da Livraria que foi de S. Mag.de a Senhora D. Carlota Joaquina de Bourbon, ms. BA-51-XIII-7, existente na Biblioteca da Ajuda.

Ora, apesar da referência no mencionado Catálogo da Factura de los acopios q.º Dn. Jn. B.ta Ardisson ha hecho en Paris p.ª la Guarda Ropa de S. M. M. la Reyna N.S., y Sr.ª Infanta D. M.ª Franc.ª de Asis. Paris 1816. 4º &, esta não foi, no entanto, localizada no acervo da Biblioteca da Ajuda, contrariamente a grande parte de outras entradas do mesmo, o que nos leva a supor que seja aquele o manuscrito que outrora pertenceu à Livraria da Imperatriz-Rainha, ou que, em alternativa, seja uma cópia em tudo semelhante ao mesmo.


A investigação, feita no âmbito do trabalho desenvolvido na Biblioteca da Ajuda permitiu, porém, que uma dúvida fosse esclarecida. Tal relaciona-se com o facto de o signatário das facturas  ter sido João Baptista Ardisson, súbdito espanhol natural de Madrid, e não uma suposta Baronesa de Ardisson, nome que constava das notícias iniciais divulgadas na Comunicação Social [1]. Uma parte da documentação relacionada com este assunto encontra-se na Biblioteca Nacional de Portugal, nos Manuscritos Reservados e, a partir desta, sabemos que fora o espanhol, que segundo o próprio, desde 1807 prestava serviços à Coroa de Portugal, incumbido de levar à corte do Rio de Janeiro, “correspondência” na qual “pedia o Rey D. Fernando 7º para Espoza a Snr.ª Infanta D. Maria Isabel de Bragança e a Snr.ª Infanta D. Maria Francisca de Assis p.ª Espoza de seu irmão”[2], conforme se pode ler nos autos da Pertenção de D. João Baptista Ardisson, subdito espanhol, e de sua mulher D. Victoria Catharina de Oiamatia. - Lisboa  1831-1839, BN. mss-33-3[3], guardados na mencionada Biblioteca.  Assim, “convencionados que forão os contratos dos cazamentos” recebeu Ardisson “os competentes despachos” para regressar à corte de Espanha. Partindo do Rio de Janeiro em Março de 1816, “chegou a Madrid no princípio de M.o do m.mo anno” e logo o rei-noivo o incumbiu de novo serviço. Agora o de ir a Paris com o objectivo de “comprar vestidos, infeites e ornatos” e “apromptar todas as galas e mais objectos necessários p.ª ambos os cazamentos”, segundo as “ordens que trazia do Rio de Jan.ro”. Ali se demorou por 3 meses e conforme alega na mencionada Pertenção (….) por “não haver fundos em conseq.cia da Invasão Francesa”, e zeloso do serviço do qual fora incumbido, aplicou os seus próprios recursos e crédito pois, desejava “fazer serviços e desempenhar as Ordens q.lhe tinhão sido dadas”.
 
Nesta missão despendera “mais de 140 mil cruzados”, regressando a Madrid “hum mês antes da chegada das Augustas Noivas”, já munido das encomendas reais, regozijando-se de tudo ter merecido a “completa aprovação de todas as Reas Pessoas”. Ora, pertencendo aos “Pays das Augustas Espozas pagar metade de toda a despeza”, passados mais de vinte anos, apenas fora reembolsado de uma parte da mesma. E a esta dívida somava-se uma outra “privativa e particular de S. Mag.de a Imperatriz Rainha a Snr.ª D. Carlota Joaquina de Bourbon da quantia de 9.208$960 r. motivada d´objectos a q. o supl. satisfez de Sua ordem no Anno de 1815 e 1816”. Esta dívida fora reconhecida pela “Augusta devedora” que, por Decreto de 12 de Agosto de 1829, a mandara pagar em prestações anuais de 500$00. Porém, com a morte da soberana em 1830, suspenderam-se esses pagamentos, o que motivava Ardisson a dirigir nova súplica, em 1839, agora à Rainha D. Maria II (1819-1853), neta da ilustre devedora.
A afirmação de Max Weber de que “status groups are stratified according to the principles of their consumption of goods as represented by their special styles of life[4], isto é, a necessidade de assegurar uma dimensão de representação simbólica do poder régio determinava a aquisição de objectos sumptuários, independentemente das disponibilidades financeiras de cada momento. Aliás, quem iria recusar fornecer à Casa Real os bens de que necessitava? Teoricamente os recursos seriam quase que ilimitados. No entanto, na prática, nem sempre a organização da “contabilidade” permitia satisfazer prontamente os credores, como este e muitos outros exemplos testemunham.

Sobre o elenco dos artigos que justificaram as quantias reclamadas por João Baptista Ardisson poderá, provavelmente, o manuscrito - agora pertença do Palácio Nacional de Queluz - lançar alguma luz, uma vez que o idêntico que pertenceu à Livraria de D. Carlota Joaquina há muito que não se encontra na Biblioteca da Ajuda. Será o mesmo? Será uma cópia? Teria o mesmo integrado o conjunto de manuscritos e impressos que seguiram com D. Manuel II (1889-1932) para o exílio, teria estado na posse de sua Mãe, a última Rainha de Portugal, D. Amélia de Orléans (1865-1951), que o levaria quando partiu de Portugal, na sequência da implantação da República? Não temos resposta para estas questões. Apenas uma certeza: a que o regresso do manuscrito, agora adquirido, estimulará mais investigação e ajudará a melhor esclarecer as dúvidas agora suscitadas, bem como a aprofundar o conhecimento sobre a relação da coroa portuguesa com os centros europeus difusores de correntes estéticas, contrariando a ideia de uma corte alheada e desfasada do que se passava além Pirenéus, como certa historiografia oitocentista quis fazer passar.

MMB

[1] Link Publico [aqui]
[2] As infantas portuguesas, filhas de D. Carlota Joaquina (1775-1830) e de D. João VI (1767-1826), mais concretamente, D. Maria Isabel (1797-1818) e D. Maria Francisca de Assis (1800-1834), casaram com, respectivamente, Fernando VII de Espanha (1788-1833) e seu irmão Carlos Maria Isidro (1788-1855).
[3] Link BN [aqui]
[4] M. Weber, “Class, Status, Party”, em Class, status and power, Londres, 1954, p.73, em Ethos aristocrrático y estructura del consumo: la aristocracia cortesana portuguesa a finales del Antigua régimen, Nuno Monteiro, F. I. H. S. UNED Valencia.

Sem comentários: